segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Neil e Diana




“É tarde, estou cansada, vou para a cama”, foi o que disse Diana, inesperadamente, bem ao meio do filme que assistia com seu namorado. Desenroscou-se de Neil, foi se levantando do sofá como quem pratica contorcionismo, sentindo o corpo pesar como quem carrega toneladas tombadas sobre os ombros. Como autômata, foi rumo ao quarto, sem dirigir a ele mais qualquer palavra ou olhar, mas não se esqueceu de beber o costumeiro copo d'água antes do ritual de recolhimento.

Passava da meia noite quando Diana estava, enfim, deitada em sua cama, em seu quarto. Já Neil, inquieto, não demorou a se juntar a ela. Para ele o sofá, quente e confortável enquanto acompanhado, tornava-se um banco frio, duro e cinzento na ausência de sua amada. Até tentou insistir no filme, mas não estava ali por ele, mas por ela, ou melhor, por eles: pelo compartilhar, pelo conversar, pelo toque de pele. Não se agüentou muito tempo naquela imensidão silenciosa.

Na ponta dos pés, fechou a porta do banheiro do quarto do casal e escovou os dentes, em silêncio, pois Diana já parecia dormir. Foi à cozinha, encheu um copo com água e o cobriu com um lenço de papel, como quem prevê a sede da amada ao meio da noite (Diana tem o costume de acordar pelas madrugadas, sedenta), depositou em vigília aquele copo à cabeceira da cama, ao lado dela, e, depois de um leve e breve solitário beijo de boa noite, deitou-se também.

Apesar da aparente frieza, Diana não desdenhou de seu amado, apenas cedeu ao seu corpo e mente exaustos, martirizados pela tamanha carga e esforço que vem empreendendo por trabalhar tanto nos últimos tempos, sem o devido respeito aos seus próprios limites. Ela é persistente e obstinada quanto ao trabalho, e entrega-se de tal maneira, atenta aos extremos detalhes perfeccionistas, que muitas vezes chega a adoecer.

Não é bem o trabalho a sua paixão, mas a necessidade de reconhecimento de si mesma, o que lhe provoca a sensação de missão cumprida, de espírito quase protestante ao saber que foi ao limite, ou até mesmo o ultrapassou, sem romper a sinuosa linha da ética, alcançando seus objetivos e colhendo os merecidos créditos nascidos do trabalho íntegro, árduo e auto-imposto.

Neil deitou, mas não dormiu. Ainda estava entregue ao contato quente do sofá e seus instintos aflorados queriam sexo. Talvez não só isso, ou talvez não tudo isso; mas a queria um pouco mais. Virou de costas para Diana, por um constrangimento inconsciente, tentando não demonstrar, nem a si mesmo, que lhe faltava o sono e que a desejava naquele momento. Constrangido, pois, afinal, a mulher não tem culpa daquelas vontades não saciadas de seu homem. Porém, Diana não dormia ainda, e ela percebeu, e sabia, mas permaneceu quieta, consentindo àquele diálogo mudo.

Como já dito, Diana trabalha por demais e conquistou boa posição profissional, esforço que Neil admirava e o fazia refletir e aprender sobre dedicação e persistência; mas também sabia que, em muitas das vezes, o excesso de trabalho era um algo mais para Diana, era um modo de fugir das relações e dos fantasmas de desilusões amorosas, e, principalmente, das relações familiares que tanto a torturavam. E assim, como um cúmplice silencioso, Neil a respeitava sobremaneira, esforçando-se por não sangrar feridas abertas, e em muitos momentos permanecia quieto em sua aceitação e silêncio, à espreita dos momentos certos para se aproximar dela e, ao menos, lhe oferecer algum conforto de espírito.

Dormindo um para o outro, mas acordados para si mesmos, no meio da noite, no meio da cama, acabaram por se procurar e cruzaram seus olhares entreabertos. Ela, sobriamente aliviada da culpa de negligenciar as aflições de Neil, debruçou o braço esquerdo, em que estava apoiada, até aquele rosto acalentador, e acariciou sua barba por fazer, como quem toca um tesouro raro. Ele, aliviado da angústia de quem espera, beijou-lhe o lado direito do pescoço branco e quente, como quem encosta os lábios em algo sagrado. Sorriram. Trocaram doce boa noite. Com uma paz quase beatífica, desejaram um ao outro, suaves sonhos.

Diana, apesar de ser ainda mais ansiosa que Neil, conseguiu dormir aliviada, até mesmo por ser mais prática e ter a consciência de que precisava do descanso. Já ele, ainda absorto em pensamentos, mesmo ciente de que deveria apenas dormir, fechou os olhos, mas não conseguiu. Ainda navegava, acordado, no universo de possibilidades de toques, carinhos, afagos e desejos por aquele corpo quente e amado que repousava ao seu lado, porém em conflito com o sentimento egoísta de ultrapassar os limites do próprio esgotamento de Diana. A marca de um momento de guerra entre um racional que consente e um emocional carente e incompleto.

E assim, aos poucos o tempo esgota as energias. As tensões irracionais, tão cotidianas, são desfeitas, e ambos podem repousar seus espíritos aflitos e abrir as portas ao mundo de Morpheus, entregues aos sonhos, onde tantos desencontros da vida real podem se transformar em encontros idílicos, em um tempo e espaço mágicos, onde os sentidos e os desejos se saciam e os seres podem viver seus próprios contos encantados.


Gabriel Oliveira e Karina Arantes

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Obrigado pela apaixonante parceria no texto, Karina. Extremamente grato, Gabriel.

3 comentários:

Unknown disse...

eu que agradeço... espero que seja apenas a primeira de váaarias parcerias deliciosas!!! beijo grande

Yara França Büsmayer De Cazenove disse...

Muito muito bom!

Ane Diniz disse...

Li parte desse texto ouvindo yann tiersen e outra Ben Harper.
vibrei com o texto em tds as suas partes ....