domingo, 17 de outubro de 2010

A bela moça Furtiva

Exatamente ás 14:30 partiu o ônibus da rodoviária, não inciara ali sua viagem, já vinha de longe, de outras cidades, o que chamam de "carro em trânsito". Não houve atrasos nem complicações maiores do que as costumeiras, não estava cheio, não era o início e nem o fim de feriado prolongado quando as pessoas esbarram-se nos terminais.
Na poltrona 21, sentou e acomodou-se Neil. Ao que parecia, por toda a viagem ninguém sentaria ao seu lado e poderia esticar-se da melhor maneira que lhe coubesse. Era um ônibus aconchegante, não havia cheiro de cigarro, de urina ou comida. Ao que tudo indicava seria uma viagem não desagrádavel e, simplesmente, comum.

Do outro lado do corredor, nos assentos ao lado de Neil, debruçava-se sobre a janela a moça.Uma moça bonita, com seus vinte e poucos anos, cabelos longos, pele branca, mui branca, corpo esbelto e roupas comuns.

Neil, bem que tentou, mas não evitou observar a moça, a bela moça, como se não conseguisse apenas olhar, apenas reconhecer que ao seu lado havia uma bela moça, necessitou observá-la, com todo o cuidado que lhe é de costume, não lhe apetece invadir a privacidade alheia, mas era como se a moça ao seu lado lhe roubasse o olhar e a atenção.

Quando ela o olhou, Neil percebeu o por que de tamanha curiosidade, os singelos olhos castanhos da moça (tão claros), pareciam furtar a luz do sol que lhes tocavam, e que depois de furtada a luminosidade da estrela, eles distribuiam com abundância e altruísmo o brilho e aconchego furtados. Neil não é desses de perder o seu lugar no mundo por qualquer moça bonita que passa pela rua a sua frente. Essa viajante ao lado, realmente, parecia lhe furtar a atenção, o sono e os pensamentos.

Podemos ler no dicionário que furtar é subtrair algo alheio sem o uso da força ou da ameaça, e era exatamente isso que a moça ao lado era, uma moça furtiva. Neil, não conseguira piscar o olho e convocar o sono durante a viagem, para não se deixar levar de todo, não se deixar furtar como um todo, leu o livro que estava em suas mãos, sem deixar de, hora ou outra, observar a bela moça.

Por que não conversara com ela? Não se sabe ao certo, imaginamou que ela também lhe furtara a coragem, como se ele não quisesse atrapalhar a moça que parecia não querer ser incomodada, no mundo de hoje, as pessoas tem medo de serem abordadas por estranhos mesmo que estes apresentem a melhor das boas intenções, afinal não é de hoje que a sabedoria popular nos aconselha que de boas intenções o inferno está cheio.

Ela dormiu. Neil não acreditava no que via. Quanta graça, quanta beleza e calma exalava. O pescoço levemente curvado para a esquerda, o corpo (aquele admirável e completo corpo) jogado com tanta leveza no banco do ônibus, parecia jazer num leito celeste, jorrando brilho e paz, e ela dormia, e Neil não se continha, também de alegria e paz.

Notem que a bela moça furtiva, não apenas furtava, mas também distribuia, tal qual uma Hobin Hood contemporânea da beleza e da graça.

Neil tentava não observar a todo momento, não queria despertá-la de seu sono, queria apenas sonhar com o que sonhava a moça, compartilhar com ela tamanha paz que sentia ao fitá-la. Olhava pela janela a estrada e os carros que passavam, um sol castigava o mundo exterior e, tal qual a um sonho, ele não o sentia, dentro daquele ônibus a temperatura mantinha-se a mesma por conta do ar condicionado.

Neil não se continha, começou a poetar o que sentia a observar a moça, mentalmente. Descobria adjetivos e metáforas que lhe cabiam ao fenômeno que observava, e quanto mais poetava, mais se encatava, mais se exaltava interiormente, menos se continha a observar o sono da bela moça furtiva, seus trejeitos, como descansava os braços, como virava para o outro lado deixando-o apenas com o perfil do rosto.

Lá fora começou a chover, infelizmente, Neil não sentia o aroma das águas molhando o asfalto em brasa, mas seu êxtase era tamanho que era como se inspirasse a brisa da forte chuva de verão adiantada, olhou novamente a bela moça furtiva, fechou os olhos e sentiu-se correndo ao lado da grama ao lado da estrada que solene molhava, sentiu-se deitado nela, rolando o corpo na grama, que não pinicava, aconchegava. De olhos fechados, Neil sorria e desejava que a moça ao lado sentisse com ele essa sensação de liberdade e prazer, sinestésica e lisérgica. Como se quisesse sonhar por ela, como desejasse retribuir a paz e alegria por ela distribuida.

Ela acordou, e os olhos castanhos demoraram alguns segundos a exprimir a solenidade de outrora, como se ainda perdidos entre o mundo do sonho e a tangível realidade. Neil não conseguiu conversar com ela, afinal, o que diria? Oi, não sei teu nome, mas vejo tu como uma bela moça furtiva que me furtou o sono, a atênção e os pensamentos. Não soaria tão normal como da maneira que tudo aconteceu, ele iria parecer um galante qualquer, um aproveitador. Não, Neil, não se aproximou.

Pensou que não conseguiria se fazer entender, não seria capaz naquele momento de exprimir todo o respeito e carinho que já adquirira pela graça da bela moça, mas ele queria muito, e como queria, embalar seu sono, tentar de todas as maneiras fazer com que seu gostoso sono jamais terminasse, ou pelo menos dar-lhe um "boa noite" com um beijo de carinho e respeito em sua pele branca e quente entre os seus pequenos seios (e como são acalantosos os sinceros e carinhosos afagos de "boa noite").

Antes da viagem de Neil chegar ao fim, breve e inesperadamente tal como ele entrou, a bela moça furtiva desceu do ônibus. Ele nada disse, nada manifestou, ela se foi. A viagem prossegue.
Neil nunca mais verá a bela moça furtiva, mas de que isso importa? Ela, que passou, lhe furtou o sono, a atenção e os pensamentos, e principalmente, o tédio de uma longa viagem de ônibus.
Ela que vá furtar e distribuir a outros, não sou egoísta, pensou Neil.

Gabriel Oliveira

imagem: "Encruzilhada" de marcelo Taube.
fonte: http://mondomoda.wordpress.com/2009/11/18/exposicao-de-marcelo-taube/
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Como de costume, deixo alguns versos do "poetinha", Vinicius de Morais do livro Antologia Poética.
Poema dos olhos da Amada

Ó minha amada
Que olhos os teus

São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe dos breus...

Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...

Ah, minha amada
que olhos os teus

Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas era
Nos olhos teus.

Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.

Um comentário:

Maria Carolina disse...

Olha só que coisa! Ouvi estes versos há pouco, cantados por Maria Betânia...

Bacana passar por aqui e ver que vc anda inspirado! Não deixe de escrever seus textos... Gosto muito deles!

:)